sábado, 3 de novembro de 2012

Não se morre de amor



     Era novembro, a primavera se encarregava de colorir e perfumar a paisagem, na rua as crianças brincavam e gargalhavam como se a vida fosse apenas aquele instante. O Sol já recolhia as suas ferramentas e se preparava para o espetáculo que ele estava prestes a protagonizar, sem falta e com a mesma beleza memorável de todos os fins de tarde. Ana, sentada ao pé da cama com um álbum de fotos no colo, se via distraída olhando para o brilho dourado que apontava no horizonte sem ao menos perceber que o mestre das manhãs subia ao palco. Seus olhos amendoados o fitavam profundamente, mas seus pensamentos estavam muito além do que os seus olhos ou de qualquer um, pudessem enxergar. Ela estava perdida na melancolia e na nostalgia que as fotos do álbum repousado na saia de algodão lhe traziam. As lembranças fizeram com que uma lagrima doce brotasse e deslizasse no lado esquerdo da face, se dependurando no queixo fino da moça.
     Essa lagrima era apenas um pequeno detalhe se comparado ao mar de outras dela que afogavam o coração de Ana. Ali no meio daquelas fotos estava o motivo de toda a inundação de sua alma. O motivo tinha nome. Jorge. O grande amor de sua vida. No radio começava a tocar Whataya want from me e Ana a incorporava como trilha sonora do filme que se rodava em sua cabeça.  O que se passava naquele cinema fantasma era o que qualquer pessoa que conhecia ou que fora figurante da historia dos dois sabia. A vida de Ana se resumia em antes, durante e depois de Jorge.
     Saber disso era o que mais torturava a moça. Lembranças podem se tornar a pior inimiga de uma pessoa e agora cada uma que viesse assombrar a alma da garota, surtia o efeito de um tiro a queima roupa e o pior de tudo era que nenhuma das balas seria capaz de mata-la, ela teria que se acostumar com as dores e com as sequelas até o dia em que não houvesse lugar do corpo a ser atingido. E ao contrario do que se dizem por aí, não se morre de amor, se morre com a falta dele.
     A cada lembrança, um tiro e a cada tiro uma sentença. Antes de Jorge, Ana era rio calmo, assim que o conheceu se transformou em mar agitado e agora era nada menos que uma pocinha d’água que estremecia a qualquer pedrinha lançada sobre ela. Nada desse mundo podia animar a vida de Ana, nenhuma pessoa, nenhuma felicidade, nenhum susto acelerava o seu coração, agora era tudo constante e isso a perturbava. Antes ela era completa, ele chegou e a fez transbordar, hoje era tudo muito escasso, sua existência dependia das migalhas que ela encontrava dentro de si. Ninguém jamais foi capaz de cavar um poço pra ver se brotava alguma coisa, o solo era muito seco e quebradiço para que isso fosse possível. Antes ela era pintura de rua, ele a transformou em quadro raro e agora não passava de papel borrado que nem mesmo Van Gogh ou Picasso conseguiriam transformar em arte abstrata. Em fim, ela era boa, com ele era a melhor e agora era como todos os outros.
     Ela sabia muito bem que poderia ter evitado esse fim. Ora pois, Jorge a amava mais do que viera amar qualquer outra mulher, mas Ana não deu o devido valor. Ela o amava, mas achava que apenas o amor dele bastaria, tinha plena convicção que o amor de Jorge seria suficiente pelos dois, que ele os carregariam por toda a vida e que o amor que ela tinha, e que ainda tem, seria apenas para casos de emergências. Mas não foi, Jorge não suportou a carga de amar por dois e pegou o que ainda restava dele e foi embora. Ana não fez nada para impedir, apostou todas as fichas que ele voltaria disposto a continuar a carrega-los pra onde quer que fossem. Mas ele não voltou. Hoje ela se arrepende de ter sido fraca e egoísta. Tudo teria sido tão diferente se ela tivesse segurado aquele que era o seu mundo com as duas mãos e mantivesse abraçado junto ao peito ao invés de te-lo pendurado em um fio de seu cabelo. Só ela sabe como doeu ver a coisa mais preciosa deste e de todos os outros mundos saindo pela porta da frente.
      O filme acaba. Ana guarda o álbum de fotos, a musica que toca agora é Never told you, ela calça as meias e caminha até a janela para comtemplar o próximo espetáculo do céu. A Lua pintava na escuridão parecendo cantar a mesma musica que toca no radio, as estrelas choram as dores de Ana. Esta não chora mais, na verdade tem um sorriso neutro nos lábios imaginando que nesse exato momento Jorge estaria mudando a vida de alguém e esse alguém saberia somar e multiplicar os amores. Ana cantarola o refrão da musica tocada no rádio e interpretada pela Lua e vê que as estrelas cessão o choro e sorriem junto com ela. O espetáculo segue até a hora em que o Sol acorda para mais um dia de trabalho.
- Caliane Melo.

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