Era novembro, a primavera se encarregava de colorir e
perfumar a paisagem, na rua as crianças brincavam e gargalhavam como se a vida
fosse apenas aquele instante. O Sol já recolhia as suas ferramentas e se
preparava para o espetáculo que ele estava prestes a protagonizar, sem falta e
com a mesma beleza memorável de todos os fins de tarde. Ana, sentada ao pé da
cama com um álbum de fotos no colo, se via distraída olhando para o brilho
dourado que apontava no horizonte sem ao menos perceber que o mestre das manhãs
subia ao palco. Seus olhos amendoados o fitavam profundamente, mas seus
pensamentos estavam muito além do que os seus olhos ou de qualquer um, pudessem
enxergar. Ela estava perdida na melancolia e na nostalgia que as fotos do álbum
repousado na saia de algodão lhe traziam. As lembranças fizeram com que uma
lagrima doce brotasse e deslizasse no lado esquerdo da face, se dependurando no
queixo fino da moça.
Essa lagrima era
apenas um pequeno detalhe se comparado ao mar de outras dela que afogavam o
coração de Ana. Ali no meio daquelas fotos estava o motivo de toda a inundação
de sua alma. O motivo tinha nome. Jorge. O grande amor de sua vida. No radio
começava a tocar Whataya want from me e Ana a incorporava
como trilha sonora do filme que se rodava em sua cabeça. O que se passava naquele cinema fantasma era
o que qualquer pessoa que conhecia ou que fora figurante da historia dos dois
sabia. A vida de Ana se resumia em antes, durante e depois de Jorge.
Saber disso era o
que mais torturava a moça. Lembranças podem se tornar a pior inimiga de uma
pessoa e agora cada uma que viesse assombrar a alma da garota, surtia o efeito
de um tiro a queima roupa e o pior de tudo era que nenhuma das balas seria capaz
de mata-la, ela teria que se acostumar com as dores e com as sequelas até o dia
em que não houvesse lugar do corpo a ser atingido. E ao contrario do que se
dizem por aí, não se morre de amor, se morre com a falta dele.
A cada lembrança,
um tiro e a cada tiro uma sentença. Antes de Jorge, Ana era rio calmo, assim
que o conheceu se transformou em mar agitado e agora era nada menos que uma
pocinha d’água que estremecia a qualquer pedrinha lançada sobre ela. Nada desse
mundo podia animar a vida de Ana, nenhuma pessoa, nenhuma felicidade, nenhum susto
acelerava o seu coração, agora era tudo constante e isso a perturbava. Antes
ela era completa, ele chegou e a fez transbordar, hoje era tudo muito escasso,
sua existência dependia das migalhas que ela encontrava dentro de si. Ninguém
jamais foi capaz de cavar um poço pra ver se brotava alguma coisa, o
solo era muito seco e quebradiço para que isso fosse possível. Antes ela era
pintura de rua, ele a transformou em quadro raro e agora não passava de papel
borrado que nem mesmo Van Gogh ou Picasso conseguiriam transformar em arte
abstrata. Em fim, ela era boa, com ele era a melhor e agora era como todos os
outros.
Ela sabia muito
bem que poderia ter evitado esse fim. Ora pois, Jorge a amava mais do que
viera amar qualquer outra mulher, mas Ana não deu o devido valor. Ela o amava,
mas achava que apenas o amor dele bastaria, tinha plena convicção que o amor de
Jorge seria suficiente pelos dois, que ele os carregariam por toda a vida e que
o amor que ela tinha, e que ainda tem, seria apenas para casos de emergências.
Mas não foi, Jorge não suportou a carga de amar por dois e pegou o que ainda
restava dele e foi embora. Ana não fez nada para impedir, apostou todas as
fichas que ele voltaria disposto a continuar a carrega-los pra onde quer que
fossem. Mas ele não voltou. Hoje ela se arrepende de ter sido fraca e egoísta.
Tudo teria sido tão diferente se ela tivesse segurado aquele que era o seu
mundo com as duas mãos e mantivesse abraçado junto ao peito ao invés de te-lo pendurado em um fio de seu cabelo. Só ela sabe como doeu ver a coisa mais preciosa
deste e de todos os outros mundos saindo pela porta da frente.
O filme acaba. Ana guarda o álbum de fotos, a musica que
toca agora é Never told you, ela
calça as meias e caminha até a janela para comtemplar o próximo espetáculo do
céu. A Lua pintava na escuridão parecendo cantar a mesma musica que toca no
radio, as estrelas choram as dores de Ana. Esta não chora mais, na verdade tem
um sorriso neutro nos lábios imaginando que nesse exato momento Jorge estaria
mudando a vida de alguém e esse alguém saberia somar e multiplicar os amores.
Ana cantarola o refrão da musica tocada no rádio e interpretada pela Lua e vê
que as estrelas cessão o choro e sorriem junto com ela. O espetáculo segue até
a hora em que o Sol acorda para mais um dia de trabalho.- Caliane Melo.
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