sábado, 21 de julho de 2012


     José Araújo de Alcântara, quarenta e três anos,  filho de um carteiro e de uma professora de gramatica, acordava como de costume ás 04:35 da manhã para tomar banho, calçar os sapatos de couro velho, tomar uma xícara de chá de camomila e descer as pressas os 73 degraus da escada do prédio antigo em que morava, para pegar o primeiro ônibus que o levaria até a metade do caminho ao Cartório Municipal onde trabalhava á seis anos, onze meses e dezoito dias. Emprego do qual pensava em continuar até o dia em que se aposentaria.
     Era conhecido por todos como Zé Tesoura. Esse apelido se deu quando Zé ainda era um menino devido a sua habilidade de cortar as pipas dos outros meninos que enfeitavam o céu ensolarado na época das férias escolares. O apelido continuou o mesmo, mas o significado mudou bastante, agora ele era conhecido assim como “Tesoura”, porque não dava intimidade a ninguém, “cortava” de imediato quem se atrevesse a vir-lhe com brincadeirinhas de qualquer tipo.
     Zé Tesoura era um homem sério, centrado, discreto e resguardado, muito diferente do pequeno Zezinho Tesoura de trinta e tantos anos atrás. Zezinho era um menino brincalhão, espalhafatoso, muito disposto e sonhador. Era como qualquer garoto da sua idade. Soltava pipa o dia inteiro, corria entre a multidão de garotos no meio da poeira atrás dos carros que passavam pela rua de terra batida e enlouquecia quando um avião sobrevoava por cima das casas. Ele era sempre o primeiro a correr para ver o espetáculo no ar e ficar gritando e dando tchau até o grande pássaro de ferro sumir por entre as nuvens. Tinha a tampa do dedão esfolado de tanto jogar bola descalço no campinho de futebol do quarteirão. Nos dias de muito calor, se jogava na enorme bacia de roupa da mãe e fingia estar em pleno oceano Atlântico, junto do seu barquinho de papel engrossava a voz e gritava “Marinhos, preparem-se, um navio pirata se aproxima”, “Preparar ganhões, apontar, fogo!”,” Bum! Bum! Buum!”. E nos dias frios juntava-se a toda a molecada da rua e iam procurar qualquer pedaço de madeira que estivesse dando sopa por aí, para poderem acender a maior fogueira de todas e ficavam lá contando historias até que as mães começassem a aparecer nas portas chamando-os para o jantar.
     É claro que com a vida corrida e difícil que Zé Tesoura levava, não havia tempo para lembrar-se daquele tempo bom, nem mesmo em nenhuma nas quatro viagens de ônibus que era preciso para ir e voltar do trabalho. Quando chegava em casa tomava um banho rápido e silencioso- ninguém nunca ouvira Zé cantar, nem mesmo assoviar debaixo do chuveiro- e logo depois de uma xícara de café bem forte, Tesoura caía na cama bem esticada e gelada do seu quarto escuro. Apesar do seu temperamento frio e distante, Zé Tesoura era uma boa pessoa, extremamente honesto, – nunca roubou se quer uma balinha de menta da vendinha do Seu Juca- nunca fizera mal pra ninguém, exceto para ele mesmo.
     Se Tesoura tivesse tempo para relembrar o seu tempo de menino, certamente o faria com lamentações e arrependimentos. Mas será que ele se decepcionaria por não ter seguido o seu sonho de ser bombeiro? Lamentaria não ter tido e nem buscado a oportunidade de visitar Júpiter? Se arrependeria por não ter se casado com Cidinha, a garota mais lindinha de toda a escola que fora o seu primeiro amor? Choraria por não ter conquistado um troféu no torneiro de jogos infantis? Provavelmente não. Zé acharia tudo aquilo que antes chamava de sonho, uma perca de tempo. Não teria nem o trabalho de olhar em volta e ver a vidinha medíocre que tinha. Era funcionário de um Cartório, nunca viajou além da cidade mais próxima, foi casado com uma corretora de imóveis que usava terninho azul marinho, fumava três maços por dia e que a única coisa que fazia durante o dia era assistir programas de fofocas e acariciar o gato gordo que herdou da tia avó. Zé não tinha troféus, medalhas e nem cartas de amor guardadas. Tinha uma vida cinza e seu corpo permanecia sempre em temperatura ambiente. Sempre.
     Ninguém sabe explicar como Zé Tesoura foi se tornar uma pessoa tão avessa do que costumava ser. Talvez, conforme ele crescera e seu corpo se esticara, o seu coração fora se diminuindo, esmagando entre suas paredes aquele menino alegre e vivido que existia, para dar espaço ás suas novas dimensões. A vida seguia da mesma maneira de sempre, até que, quando Zé completou sete anos de trabalho no Cartório, foi gratificado com um aumento salarial e pode em fim comprar o tão desejado fusca azul. Por alguns segundos, quem estava por perto pode ver Tesoura um tanto entusiasmado e era possível até perceber um ligeiro brilho nos olhos de Zé ao receber as chaves do carro.
     O verdadeiro milagre aconteceu no caminho de casa, quando Zé passou com o seu carro, por um grupo de crianças e essas, como se buscassem por um sonho, puseram-se á correr atrás do seu carro cor de céu. Elas pulavam, gritavam, esticavam as pequenas mãos sujas de terra, enquanto a poeira as tornava simples fantasmas. E nesse exato momento, Zé Tesoura sentira um arrepio bom, que percorria todo o corpo e sua temperatura oscilava de 34°C á 38°C e pelo retrovisor podia-se ver os olhos do homem de aço sorrirem. Pela primeira vez em muitos anos Zé Tesoura sentia a felicidade tomando conta da sua alma. E agora sabemos que o coração dele poderia ter se reduzido a mera bolinha de gude, mas ele ainda existia, assim como o pequeno Zezinho Tesoura, e saltitava como se acabasse de passar por sua cabeça, o maravilhoso pássaro de ferro.

- Caliane Melo.

2 comentários:

  1. Lindo texto, como sempre *-*
    Já tava sentindo falta de você por aqui..

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  2. Hoho, estava organizando a vida pra poder voltar pra cá nos trinks! Hushausha Muito obrigada por continuar por aqui lindona *--*

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